PUBLICIDADE

O líder religioso autointitulado João de Deus excedeu-se em sua ousadia, ao aproveitar-se daqueles que acreditam na autenticidade de sua mediunidade, através da qual consegue as denominadas curas espirituais. É uma exceção entre outros líderes religiosos carismáticos porque errou na dose de aproveitar-se da ingenuidade alheia devido à sua compulsão neurótica que transcendeu o necessário senso de malícia típica dos oportunistas. E como prisioneiro de sua compulsão erótica, jogou no lixo sua reputação de privilegiado divino, como é considerado todo líder religioso carismático.

O carisma é uma suspensão da racionalidade inerente à vida, no vácuo da qual a imaginação humana constrói uma personalidade com capacidades incomuns à maioria da humanidade. Autoconvicto de seu carisma, o líder carismático adquire a confiança do que denomina seus dons adquiridos pela vontade divina, e sustenta essa sua convicção porque encontra o respaldo dos seus seguidores, testemunhas pessoais das curas espirituais que realiza. Sustentado pela sua fama, o líder carismático adquire a certeza dos seus poderes sobrenaturais, e torna-se cada vez mais ousado em relação ao alcance de sua capacidade de curar seus pacientes. Como poder e fama caminham juntas, e alimentam-se mutuamente, muitos líderes carismáticos caem na armadilha produzida por essa união espúria, e julgam-se superiores aos demais viventes, e impunes diante da realização de suas compulsões neuróticas. Envolvidos neste seu mundo imaginário, certos líderes carismáticos confirmam sua onipotência diante da passividade dos crentes diante de seus assédios, considerados por muitas vítimas como ingredientes inerentes aos rituais que promovem a cura do seu mal. Mas entre o mundo irreal do compulsivo e a vida real dos viventes há limites interpostos pela racionalidade, que denunciam a fraude produzida pelos desvios compulsivos. É nesta cilada armada pela realidade que João de Deus caiu, denunciado por muitas de suas vítimas conscientes dos desvios cometidos pelo autoenviado divino.

João de Deus pertence à categoria dos líderes carismáticos autonomeados que se excedem em suas práticas pretensamente milagrosas, e terminam suas carreiras como impostores. Mas há muitos líderes dessa categoria bem sucedidos porque são sagazes e permanecem nos limites do coletivamente tolerável. Percebem e interpretam as carências emocionais da coletividade como anseios religiosos dos viventes, e canalizam essas solicitações organizando suas próprias igrejas. Em suas pregações, enfatizam as vertentes messiânicas e milenaristas das religiões, e colocam-se como um elo necessário no caminho da redenção final. Ao contrário do que aconteceu com Antônio Conselheiro nos sertões nordestinos, a maioria dos líderes carismáticos não enfatiza em suas pregações as questões sociais que motivam as carências da população, preferindo conduzir o seu público fiel para a crença nos milagres, incluindo aí as suas curas, que afinal servem de elo entre a divindade e os pecadores.

Milenarista, carismático e desejando realizar o reino de Deus aqui no planeta, Antônio Conselheiro implantou, acompanhado dos seus fanáticos seguidores nordestinos, a comunidade de Canudos, onde ensaiou a realização de uma sociedade comunitária, baseada no apoio mútuo da população. Mas o governo republicano entendeu essa experiência como uma iniciativa perigosa para a sociedade brasileira, e militarmente quebrou a resistência obstinada dos fanáticos seguidores de Antônio Conselheiro.
Antônio Conselheiro e João de Deus são líderes religiosos carismáticos situados nos extremos das experiências carismáticas. Antônio Conselheiro é respeitado por ser um líder carismático, e sincero em suas concepções; João de Deus naufragou em suas compulsões neuróticas e cedeu a esses impulsos utilizando-se do seu carisma. Entre estas duas tendências extremas situam-se inúmeros Joãos, cujas compulsões seduzem os desamparados.

Gilberto Radicce

PUBLICIDADE