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Sou filho de pai imigrante italiano e de mãe cabocla. Além de sua reconhecida generosidade, herdei do meu pai a ansiedade que o acompanhava, estimulada pela insegurança do imigrante diante de sua dificuldade de sobreviver em uma sociedade estranha e preconceituosa com o adventício. Da minha mãe herdei, além de sua extrema dedicação maternal, o fatalismo da cultura cabocla, submissa à dominação patriarcal, naquela época reproduzida pelo poder do marido sobre a mulher. Meu pai pretendeu mitigar sua ansiedade através do espiritismo, e tornou-se um médium. Segundo a teoria espírita, nessa condição estava apto a incorporar os habitantes do além, espíritos divididos entre os luminosos e os obscuros, estes ainda carentes de luzes. Os iluminados, conscientes de que deixaram na sepultura a sua parcela mortal, viviam em um patamar superior da eternidade, em busca de mais luzes vivificadoras. Nessa cosmologia, a função do médium era incorporar os espíritos sem luzes, ainda apegados ao seu corpo que já morreu, para conscientizá-los de que já pertencem ao mundo do além. A incorporação dos espíritos iluminados era o auge da mediunidade, momento da sessão espírita em que esses espíritos doutrinavam os pobres mortais das conveniências de seguir essa religião. Demonstrava aos seus ouvintes que esta vida é uma transição entre suas vidas anteriores e a próxima vida no paraíso. E para atingir essa iluminação tão desejada é necessário pagar, através do sofrimento, os erros e as dívidas contraídas em vidas anteriores. Mas esse tranquilizador discurso não se harmonizava com a turbulenta vida interior do meu pai, pois sua mediunidade colocava-o no meio de um redemoinho emocional desestabilizador, habitado por espíritos obscuros e iluminados. Muitas vezes, sem aviso prévio os espíritos obscuros se incorporavam no meu pai, alterando seu comportamento. E para reverter esses transes, o espírito incorporado precisava tomar consciência de que já não pertencia a esta vida. Essa conscientização ocorria através da ação mediadora e didática da minha mãe, cuja função espiritual era dialogar com os espíritos incorporados ao meu pai, para conduzi-los à compreensão das origens do seu sofrimento. Tornavam-se complexas essas manifestações mediúnicas a opção do meu pai pelas teorias de Allan Kardec, mas acopladas ao espiritismo de origens africanas, ambientado em um clima cultural altamente emotivo, herdado das desumanas relações entre os senhores de engenho e os escravos nas fazendas de açúcar e café. Nesse eclético espiritismo, misturavam-se espíritos luminosos e obscuros, descendentes das etnias branca, índia e negra, formadoras da nossa nacionalidade. Adotado inconscientemente como solução para as ansiedades do meu pai, o espiritismo por ele praticado amenizou, mas não solucionou seus conflitos emocionais, pois ele continuou sendo uma pessoa ansiosa, que transmitiu parcelas de suas ansiedades a este seu filho. Só lenta e penosamente ao longo da minha vida tomei consciência plena de que o núcleo de minhas ansiedades resulta de um relacionamento familiar repleto de ansiedades mescladas às esperanças no futuro do filho amado, que tiveram o efeito de tornar-me também ansioso e inseguro diante da vida. Salvou-me de um colapso existencial o comportamento protetor da minha família, que me amparou nos meus momentos difíceis, amou-me à sua maneira de amar um filho, e quando eu me alfabetizei foi generosa comigo, ao estimular-me a ler os livros que eu solicitava, sem jamais estabelecer uma censura prévia aos conteúdos de minhas leituras. Através destas, atingi uma compreensão racional não só da minha formação familiar, mas do conjunto da vida. Rompi com o espiritismo, mas não adotei outra religião como sistema de devoção e de orientação na vida. Penosamente, mas com indômita vontade, trilhei por um caminho oposto à religiosidade dos monoteísmos vigorantes em nossa sociedade, e tornei-me um professor de História, cujos conhecimentos proporcionam-me a visão racional da historicidade da vida. Essas passagens me mostraram como o núcleo da nossa existência localiza-se em nossa infância, e pode travar ou estimular nosso crescimento existencial. Sem desejar, minha família transmitiu-me parcelas de suas ansiedades, mas seu caloroso afeto por mim, demonstrado em inúmeras circunstâncias, proporcionou-me a formação cultural necessária a uma existência criativa em que as passagens são vivências transitórias, e não obstáculos ao nosso desenvolvimento.

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