Quando ele desceu do ônibus que o trouxe de Pereiras aonde era professor já escurecera. Garoava e aquela noite de inverno prometia ser fria. Viu que pessoas entravam na igreja, grande, inacabada, com suas paredes nuas. Ali estava a principal fonte de suas preocupações. Muito havia para fazer e havia uma total falta de recursos. A paróquia era pequena e a cidade, pobre. Meia dúzia de anos de emancipação política não mudara a situação da cidade que refletia em seu aspecto os duros anos que a nação toda passava.
Foi direto para a casa do Joaquim Ribeiro, onde uma rápida refeição o esperava, pois também os moradores da casa, à exceção do Luís de Moura que o assistia enquanto comia, já tinham ido à igreja aonde ele era esperado. Aquela sexta-feira de junho era dedicada ao Sagrado Coração de Jesus e apesar do vento frio, da garoa intermitente, as pessoas o estavam esperando na igreja.
Quando a celebração terminou e ele saiu da sacristia para a Rua Padre Gravina, foi que ele viu uma carroça parada diante da casa paroquial. No escuro, ele percebeu um homem que em pé segurava o cavalo pelas rédeas, enquanto assentada na carroça, havia um vulto que parecia ser de uma mulher que segurava algo em seus braços.
A conversa foi rápida. Eles moravam no sítio, na Fazendinha. A criança que teria uns seis meses de idade amanhecera “tristinha”. Haviam-na trazido na farmácia pela hora do almoço, mas o remédio não surtira efeito. Diante do quadro, a noite chegando, desesperados tinham voltado para Cesário Lange atrás de socorro. Haviam acabado de chegar. A quem recorrer? Quem sabe o padre tivesse uma solução…
Ele os recolheu na casa paroquial. Infelizmente, não tinha nada para oferecer-lhes, mas a visão daquele rostinho que definhava a olhos vistos o convenceu que algo tinha de ser feito e urgentemente. O único recurso seria levar, imediatamente, a criança para a Santa Casa de Tatuí – o hospital mais próximo – e para isso teria que arrumar um automóvel, pois na cidade não havia sequer uma ambulância.
O único automóvel disponível era o seu Ford 29 que só andava graças à persistência do Cesarinho Pisca-Pisca e do Titico Vasconcelos. Ele falou com o casal de seu pobre “pé de bode” e os riscos de enfrentar os 18 km que os separavam de Tatuí naquela estrada acidentada à noite em um automóvel que nem tinha bomba de gasolina, cujo freio era a varão… Não havia outra opção. Tinham que confiar em Deus e nas limitações do fordinho, pois o tempo corria contra a vida da criança.
Felizmente, o carrinho como soubesse da emergência pegou na primeira para a sua surpresa. Entregou um cobertor de flanela que tinha na casa paroquial para que a mãe se aquecesse junto com a criança, já que o vento entraria por todos os lados no automóvel.
A viagem deve ter levado quase uma hora. O carro por mais que acelerasse não tinha velocidade e tinha que percorrer uma estrada apedregulhada, cheia de “panelas”! Não encontraram ninguém durante a viagem e quando chegaram em Tatuí seria umas 21h00.
As ruas estavam vazias, só algum bar permanecia aberto e sem dificuldades chegaram à Santa Casa. Foram atendidos imediatamente. Havia uma freira que era enfermeira que vendo o estado da criança mandou um rapaz que ali trabalhava subir em uma bicicleta e ir à casa do doutor à toda.
Quando o médico chegou, a Irmã enfermeira já tomara algumas providências, pois achava que talvez já fosse tarde demais. Realmente, a freira estava certa. O médico até tentou, nada podia ser feito. Aquele “anjinho” deixara este mundo magnífico por falta de atendimento. Aquela voz profissional do médico o perseguiria sempre. “Se a criança tivesse sido medicada umas três horas antes, talvez tivesse sobrevivido, pois tratava de um mal oportunista que acomete em organismos frágeis e que é debelado com uma medicação simples e soro…” Ele não ouvia mais nada.
A volta no mesmo Ford 29 foi terrível. A visão daquela mãe carregando a sua criança exânime no banco de trás, o rosto abobadado do pai… aquele farol fraquinho do fordinho que nada iluminava aquela noite gelada. Ele conhecia aquelas curvas e buracos da estrada de cor. O que ele podia dizer? O que ele podia fazer? Isso lhe martelava a cabeça.
Quando enfim chegaram a Cesário Lange era já madrugada de sábado daquele mês de junho, mas uma coisa lhe acudira no caminho. Cesário Lange precisava de um pequeno hospital. Uma Santa Casa, por humilde que fosse, era indispensável. Como conseguir isso ele não tinha a menor ideia. Uma coisa era certa: pessoas como aquela criança não poderiam continuar morrendo, simplesmente porque não havia atendimento médico na cidade.
Isto aconteceu com o Padre Francisco de Assis Moraes em uma noite de junho de 1966. Ele tinha 28 anos de idade. A partir de então, ele começou a falar em suas homilias para povo sobre a necessidade de Cesário Lange ter um pequeno hospital. Muitos ouviram com ceticismo e mesmo deboche e perguntavam “com o quê?”. Onze anos depois, com ajuda da população, com muitos sonhos e não poucas contrariedades, começaram as obras da futura Beneficência Hospitalar de Cesário Lange, que começou a prestar seus serviços por volta de 1982.
Fernando Batista Almeida