PUBLICIDADE

A ditadura militar, que governou o país entre os anos de 1964 e 1985, foi cruel com seus adversários. Torturou e assassinou seus opositores mais ousados, e calou os moderados durante o auge da sua fase mais truculenta. Mas não conseguiu manter-se por mais tempo no poder porque um amplo movimento popular avolumou-se ao longo de sua vigência, e quando o descontentamento contra seus desmandos atingiu a maioria da sociedade brasileira, a ditadura militar sucumbiu diante de seus próprios limites. Um dos fatores que facilitou essa abertura foi a decretação da anistia ampla, geral e irrestrita para grupos de opositores esquerdistas radicais e militares da linha-dura do regime, que se enfrentaram na clandestinidade durante a ditadura. Mas apesar desse acordo geral, ocasionalmente levanta-se a voz de contemporâneos desse período que insistem em inocentar ou culpar um dos grupos envolvidos nessa página sangrenta da nossa história. Recentemente, essa questão voltou à tona no episódio envolvendo o presidente Jair Bolsonaro e o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe de Santa Cruz Oliveira, sobre como o militante Fernando Santa Cruz foi morto na década de 70. O presidente da OAB, filho de Fernando, baseado nas conclusões aceitas pelo Governo brasileiro, afirma que o seu pai foi torturado e morto nos porões da ditadura, enquanto Bolsonaro expressa sua própria versão, diversa da oficialmente aceita. Essa polêmica ocorre no contexto de um governo protagonizado por um presidente da República conservador, que se destaca por pronunciamentos e diretrizes governamentais majoritariamente retrógadas. Ao aproximar o mercado brasileiro dos blocos de países mais desenvolvidos e pretender enxugar o Estado brasileiro, o ministro Paulo Guedes insere o Brasil no contexto da economia globalizada, e protagoniza o lado neoliberal do bolsonarismo, mas no conjunto da orientação do atual governo é sua exceção, pois as demais diretrizes patrocinadas por Bolsonaro são ações públicas reacionárias. São tentativas de construir uma impossível modernidade conservadora, na qual a economia é moderna, mas cercada por uma sociedade que cultiva princípios incompatíveis com a atual fase de evolução da sociedade contemporânea. Tolerância excessiva com os desmatadores da floresta amazônica, escola pública militarizada, nomeação do filho para embaixador nos Estados Unidos, iniciativa de armar parcelas da população para defender-se da bandidagem, sua identificação com os setores mais truculentos da ditadura militar, revelam a visão de mundo reacionária de Bolsonaro. E o preocupante para os segmentos progressistas e sintonizados com a modernidade, é que o presidente tem o apoio dos segmentos mais reacionários da sociedade brasileira, que enaltecem o período da ditadura militar, e não descartam a vigência de um regime forte e autoritário, liderado por um presidente centralizador. Mas o bolsonarismo não se reduz a esses segmentos, pois agrega também neoliberais apoiadores do ministro Paulo Guedes, desafetos do petismo, adeptos dos salvadores da pátria, enaltecedores do ministro da Justiça Sérgio Moro, desiludidos com os políticos tradicionais e carreiristas, e muita gente bem intencionada que votou em Bolsonaro no segundo turno por falta de melhor opção. Somado aos opositores de Bolsonaro, é este último conjunto de eleitores mais independente que pode resistir ao voluntarismo conservador do presidente e impedir que o país caminhe para uma ditadura presidencial consentida pelo oportunismo do legislativo. Nestes anos de vigência da democracia, a sociedade brasileira modernizou-se e imunizou-se contra o retorno de um regime centralizador semelhante ao que vigorou entre os anos de 1964 e 1985.
A evolução humana não é linear, pois está sujeita a retrocessos como o bolsonarismo, que são sucedidos por uma nova fase de avanços e ganhos sociais. Para quem acredita que o governo conservador de Bolsonaro pode consolidar seus princípios, é esclarecedor o pensamento do arqueólogo e historiador Gordon Childe, escrito no final do seu livro O que Aconteceu na História: -“O progresso é real, embora não seja contínuo. A curva ascendente se resolve numa série de depressões e elevações. Mas nos domínios em que podem ser examinadas pela Arqueologia, bem como pela história escrita, nenhuma depressão vai ao nível da precedente, e cada elevação ultrapassa sua precursora imediata”.

PUBLICIDADE