PUBLICIDADE

Quando vivido intensamente, o futebol transforma-se na religião dos torcedores, pois contém muitos ingredientes religiosos. O templo do torcedor é o estádio, onde participa dos rituais coletivos durante os jogos, fazendo ola, cantando hinos, e extasiando-se no momento consagrador de gritar gol. Seus ídolos são os jogadores do seu time, seus símbolos sagrados são as cores e o distintivo dessa sua agremiação. Torcer para um time é uma crença eterna. Em uma entrevista, um torcedor do Atlético Mineiro confirmou essa eternidade, ao dizer que poderia trocar de mulher, mas de time, jamais. O torcedor adota um determinado time movido pela fé de que essa entidade lhe proporcionará um sistema de devoção e orientação para dar sentido à sua vida. Um meu amigo, fanático flamenguista, ao ver duas crianças jogando botão de mesa, e se uma delas joga com botões vermelhos e o distintivo do Flamengo, imediatamente torcerá por esse jogador. Uma vez Flamengo, sempre Flamengo. Torcer por um time evoca a eternidade da vida, movida pela sua devoção de cultuar essa sua idolatria enquanto viver. Candinho, um torcedor fanático do Clube Atlético Ituano, vendia amendoins no campo de futebol. Quando o seu time marcava um gol, ele não se continha, e jogava uma porção dos amendoins pelos ares, fazendo a alegria das crianças. Mas quando seu time perdia, lamentava copiosamente, necessitando do consolo dos demais torcedores. E de jogo em jogo, entre vitórias e derrotas, alegrias e tristezas, Candinho levava em frente o fardo de sua vida parcimoniosa. Como aconteceu ocasionalmente ao longo da história das religiões, a rivalidade entre as torcidas também fomenta a violência coletiva. Mas na opinião de um monge Zen-Budista, essa rivalidade é aceitável se não atinge o extremo da violência, pois a disputa por uma bola de couro nenhum mal resulta para a humanidade. Mas, como fenômeno religioso, o futebol estimula a solidariedade entre os torcedores, independente da rivalidade nos estádios. Januário, proprietário de um bar em Salto, onde os torcedores de todos os times se reuniam à noite para comemorar a vitória ou chorar a derrota do seu time, torcia para o Palmeiras. Chorou de alegria e gratidão quando ganhou de um amigo uma camisa do seu time querido com a assinatura do jogador Ademir da Guia. Como nos rituais religiosos, essa camisa tornou-se um ícone, exposta a todos que desejavam reverenciá-la. Antes de morrer, Januário pediu à família que colocasse essa camisa em seu caixão, pois desejava estar com ela em sua nova morada. Seu desejo causou tal comoção entre os frequentadores do seu bar, que no dia do sepultamento de Januário torcedores dos demais times, corinthianos, são-paulinos e santistas se confraternizaram, comparecendo ao seu enterro com uma tarja verde na camisa. O futebol tem também a sua cosmologia, onde existem o paraíso e o inferno, embora considerados locais de moradia transitória, e não eternos como nas religiões culturalmente oficializadas. O torcedor vai para o paraíso quando seu time ganha o campeonato, e desfruta plenamente de suas delícias, mas sabe que no próximo campeonato poderá descer ao inferno se o seu time cair para a segunda divisão. Sou palmeirense por influência do meu pai, pois na minha infância os filhos obedeciam devotamente as orientações dos seus pais. Naquela época toda cidade do interior tinha entre seus times amadores o Palmeirinhas, o Corintinha e o São-paulinho, adotados pelos torcedores dos respectivos grandes times paulistas. Acompanhado do meu pai, frequentava os campos locais, mas achava que a cor verde da camisa do Palmeirinhas não era tão verde como o verde da camisa do Palmeiras. Tive minha primeira decepção com o futebol quando fui pela primeira vez ao Pacaembu, e verifiquei que o meu time jogava com uma camisa verde igualzinha a do Palmeirinhas. Observei também que os jogadores profissionais não eram os magníficos ídolos com dons especiais descritos nas rádios pelos locutores esportivos, e jogavam tanto quanto os jogadores amadores da minha cidade. E destas primeiras decepções, ao longo da minha adolescência muitas dúvidas surgiram em meus horizontes, e conduziram-me a questionar a validade de muitos dos valores tradicionais dominantes na sociedade daquela época. E após muitas leituras, dúvidas, crises existências e intelectuais adquiri uma nova visão do mundo e da vida acentuada na cultura produzida pela modernidade. E como não vivemos sem um sistema de orientação e devoção, tornei-me um racionalista, ou seja, sou um crente que cultua a crença na vida. Continuo palmeirense apenas para cultivar amizades, pois sei que torcer por um time é a segunda religião de muitos viventes.

PUBLICIDADE