PUBLICIDADE

Em minha adolescência, quando frequentava o curso ginasial, predominava na sociedade um clima de patriotismo verde-oliva defensor dos valores nacionais, muitos dos quais herdados do nosso passado colonial. Um dos componentes daquele patriotismo era a defesa da integridade da nação contra a invasão do nosso território por nações vizinhas ou movidas por ideologias que contrariassem nossas mais exaltadas tradições. Essa fixação na defesa da integridade nacional resultava não só dos ecos da Guerra do Paraguai, mas também da então recente participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial contra as nações do Eixo, formado pela Alemanha, Itália e Japão. Acrescentava a esses fatores históricos a opção do Brasil pelo alinhamento com as nações ocidentais contra a expansão do bolchevismo. Inseridas neste ambiente de patriotismo verde-oliva, nossas escolas estimulavam o canto de hinos e canções patrióticas, recheadas de refrões guerreiros de destemor e coragem diante das ameaças externas à integridade da pátria amada. Nós, adolescentes inquietos e atraídos pela cultura jovem que se apossava da sociedade ocidental, éramos evasivos em relação aos apelos patrióticos exalados das escolas e dos quartéis. Cantávamos os hinos e as canções patrióticas sem o ardor exaltado dos seus versos, e preferíamos ouvir o Rock and Roll e suas vertentes, que nessa época empolgavam a juventude. No dia 7 de setembro marchávamos pelas ruas da cidade, mas sem muita convicção de estar homenageando a pátria amada. Quando criticados pelas gerações mais velhas por essas rebeldias, sentíamos um passageiro complexo de culpa logo descartado, pois o som do Rock nos atraía mais que qualquer discurso moralizador. Éramos brasileiros identificados com nossos valores culturais, amávamos a pátria, jogávamos futebol e seguíamos os exemplos dos nossos pais, mas parecia-nos que havia algo de artificial naquele patriotismo verde-oliva. Nossa geração tornou-se adulta, assistiu à lenta dissolução do moralismo contido na ética verde-oliva, atualmente cultuado apenas por minorias fixadas no passado e com dificuldades de entendimento das forças subjacentes que dinamizam a nossa sociedade. Essas minorias preenchem o vácuo desse moralismo prevalecente no passado com uma moral mais abstrata e subjetiva centrada na dicotomia entre o Bem e o Mal. Para essas minorias, ser um cidadão do Bem é um recurso eficaz quando um indivíduo deseja explicar suas convicções políticas e ideológicas. E tachar de agente do Mal quem não participa ou diverge de suas ideias é o recurso definitivo para desacreditar seu opositor. Nesse modo simplificado de conceber a complexa dinâmica da nossa sociedade, a compreensão dessa realidade é reduzida a alguns conceitos mágicos, cuja magia revela-se quando alguém intitula-se Cidadão do Bem e acusa seu opositor ideológico de Cidadão do Mal, encerrando como essas afirmações abstratas a necessidade de se esclarecer os reais conteúdos ideológicos e sociais que que se ocultam nas palavras Bem ou Mal. Nessa concepção mágica, o Mal é sempre o marginalizado da sociedade oficializada, vítima das contradições que dinamizam as relações sociais vigentes. É Cidadão do Mal o drogado, o ladrão, o morador de rua, o mendigo, o desempregado, o trabalhador informal, a prostituta, o homoafetivo, o polígamo, o ateu, o petista, o agnóstico, o comunista, o traficante, o anarquista, o louco, o afrodescendente, o índio, o desajustado ao meio social, e em grau um pouco menor o umbandista, o favelado, o neurótico, o pobre, permanecendo a mulher mal ajustada aos padrões morais dominantes em situação de dúvida vigilante. E o Cidadão de Bem é todo indivíduo integrado na sociedade oficial: -o empresário, preferencialmente o bem-sucedido, o banqueiro, o especulador nas Bolsas de Valores, os bons pagadores de impostos, o cidadão cumpridor dos seus compromissos sociais, éticos e familiares, quem nunca reclama de nada apesar de receber salário mínimo por seu trabalho mensal, a classe média comportada e conservadora, preocupada com a queda do seu padrão de vida, mas defensora dos valores tradicionais, o eterno bajulador do patrão, quem se submete à servidão voluntária, e todo indivíduo maniqueísta, que divide a sociedade entre os agentes do Mal e agentes do Bem. Mas oculto no centro da mística do Bem e do Mal, está o caráter conservador e até reacionário dessa teoria, que constitui a atual ideologia de parcelas significativas das classes médias e altas da sociedade brasileira. Esta evidência transpareceu durante a eleição presidencial de 2018, quando essas duas classes sociais, contrárias aos desmandos dos governos do PT, canalizaram seus votos para o bolsonarismo, uma mistura de dois componentes indissolúveis: neoliberalismo econômico ortodoxo com corporativismo político centralizador. Mas ao eleitor de Bolsonaro a inviabilidade essa mescla não era visível, pois cegamente venerou Bolsonaro como o arauto do Bem que extirparia do poder as forças do Mal. Vitorioso, esse projeto inicialmente empolgou os conservadores das classes médias e altas da sociedade brasileira, mas em pouco tempo a aliança entre o corporativismo e o neoliberalismo começou a se afrouxar, pois a concepção neoliberal para funcionar requer um Estado menos interventor na economia de mercado, e, portanto, é incompatível com a concepção de governo corporativista dos setores mais conservadores do bolsonarismo. Enfraquecida, essa ala conservadora vem cedendo espaço político para o crescimento da ala neoliberal ortodoxa liderada pelo ministro da economia Paulo Guedes. E para jogar mais veneno no caldeirão das maldades do diabo, surgiu a inesperada pandemia do Coronavirus para abalar o projeto neoliberal do governo federal. Mas o que concluirão os Cidadãos do Bem sobre as razões desses impasses? Deliberadamente privados de conhecimentos históricos e sociológicos, os defensores da teoria do Bem e do Mal só poderão acreditar em suas fantasias, através das quais deduzirão que no momento o Mal triunfa sobre o Bem, e para se protegerem desse Apocalipse agirão como o avestruz, que se protege do perigo enfiando a cabeça no buraco.

PUBLICIDADE