PUBLICIDADE

Sou sintonizado no mundo de João Gilberto, considerado o pai da Bossa Nova, a revolução rítmica que transformou a música popular brasileira. O mundo de João Gilberto é o mesmo de Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Portinari, Vila Lobos, João Guimarães Rosa, Gilberto Gil, Volpi, e vai por aí. Mas quantos brasileiros neste país de 209 milhões de habitantes conhecem essas estrelas que contribuem para a formação cultural brasileira? É por mais este descaso da maioria da população que este país continua à deriva, resistente a seguir a rota da modernidade, como caminham os países mais desenvolvidos.

Quando soube da morte de João Gilberto ocorrida no último sábado, dia 6, retrocedi ao ano de 1959. Nesse ano, eu era um inquieto adolescente, desfazendo-me das tradições patriarcais que impediam o alvorecer deste país, e já engajado na cultura modernista rompida com nosso passado colonial. Foi em uma tarde daquele ano que ouvi petreficado João Gilberto cantando Chega de Saudade, acompanhado apenas pelo seu violão. Senti-me identificado com aquela voz intimista, cadenciada e acompanhada por uma batida minimalista do seu violão. Ao ouvir João Gilberto, aderi ao movimento musical brasileiro desencadeado pelo seu modo revolucionário de interpretar uma canção, e que Moysés Fuks denominou Bossa Nova. Uma legião de jovens e adolescentes de classe média empolgou-se como que tornou-se um movimento cultural renovador. A Bossa Nova, um ritmo urbano que nasceu no Rio de Janeiro, integrou-se aos ritmos musicais de alcance internacional, como o também recém-criado Rock e o renovado Jazz, música norte-americana de origem negra, que naquela época superava essa barreira e penetrava entre as classes médias urbanas dos países ocidentais. A raiz da Bossa Nova foi o Samba, considerado então o rítmo brasileiro, inspirado nos morros cariocas. Mas como o Jazz, a Bossa Nova adquiriu identidade própria, cresceu e empolgou basicamente a classe média brasileira mais intelectualizada. Em seguida desdobrou-se, influenciou alguns segmentos do Jazz, e no Brasil abriu caminho para para novos movimentos musicais, como a Tropicália.
João Gilberto, baiano de Juazeiro, produziu o melhor de sua música no Rio de Janeiro, onde encontrou um ambiente cultural patrocinador de inovações culturais. Impulsionado por esse ambiente renovador, João Gilberto abriu seu talento e encontrou outros talentos musicais como Tom Jobim, Vinícius de Morais, Roberto Menescal, Nara Leão, e outros compositores e cantores mais jovens que aderiram às ousadias da Bossa Nova. E ousadia porque o intimismo que a Bossa requeria dos seus intérpretes escandalizava o público conservador, acostumado a ouvir ritmos musicais cantados em vozes estridentes, quase operísticas, e acompanhadas por grandes orquestras. Mas, apesar da reação negativa dos conservadores, a Bossa Nova criou raízes na moderna cultura brasileira, despertou a admiração do público norte-americano sintonizado na modernização da música, alcançou os países da Europa ocidental, e chegou ao Japão.

João Gilberto morreu? Para muitos brasileiros não sintonizados na revolução musical que a Bossa Nova inspirou, João Gilberto não nasceu. Mas para o público que aderiu à Bossa Nova, ou os mais jovens que vivenciam os atuais ritmos urbanos produzidos por uma renovada geração de compositores, João Gilberto eternizou-se ao contribuir para o avanço da modernidade brasileira. João Gilberto tem lugar especial na alma coletiva brasileira, e vive entre os grandes compositores nacionais: -Chiquinha Gonzaga, Noel Rosa, Alberto Nepomuceno, Pixinguinha, Ari Barroso, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Vinícius de Morais, Carlos Gomes.

Um dos paradoxos da História é que uma cultura refinada pode ser negligenciada ou mesmo desconhecida pela maioria da população, mas não esquecida, pois permanece gravada no inconsciente coletivo da humanidade. Brasileiro, João Gilberto é patrimônio da cultura universal.

PUBLICIDADE