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Ornar a medicina policialesca denunciando mulheres que abortam denuncia a hipocrisia dos que condenam mulheres pobres aos rigores da lei.

Passei da idade de me surpreender com a estupidez humana. Ainda assim, fiquei revoltado com a atitude do médico que entregou à polícia a menina que tomou Cytotec para abortar.Em nome de que princípios um profissional recebe uma menina de 19 anos, fragilizada pelas complicações de um abortamento provocado sem assistência médica, ouve sua história, calça as luvas, toca o útero e os anexos, adota a conduta que lhe parece mais adequada, sai da sala e chama a polícia para prender em flagrante a paciente que lhe confiou a intimidade?

Existe covardia mais torpe?
A função primordial da medicina é aliviar o sofrimento humano. Independentemente das contradições jurídicas criadas por uma legislação medieval, machista e desumana como a brasileira, entregar a menina à polícia contribuiu para tornar-lhe o sofrimento mais suportável?

A questão do aborto ilustra como nenhuma outra a hipocrisia moralista imposta às mulheres pobres, pelos que se intitulam defensores da vida e se atribuem o papel de guardiães dos bons costumes e porta-vozes oficiais da vontade de Deus.

A realidade é cristalina: o aborto é livre no Brasil, basta ter dinheiro para pagar por ele.
Não faltam clínicas particulares e hospitais com médicos experientes que realizam abortamentos em boas condições técnicas, desde que bem remunerados. Muitos ginecologistas que se negam a praticá-los em suas pacientes indicam esses colegas, não raro criticados pelos mesmos que fizeram o encaminhamento.

Dias atrás, Cláudia Colucci, colunista da “Folha”, lembrou uma pesquisa realizada pela Unicamp em conjunto com a Associação Brasileira de Magistrados mostrando que 20% dos 1.148 juízes entrevistados tiveram parceiras que ficaram grávidas sem desejá-lo: 79,2% fizeram aborto.

Das 345 juízas que participaram do estudo, 15% já haviam tido gestações indesejadas: 74% delas abortaram.
A colunista citou estudo semelhante conduzido pela Federação das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) entre ginecologistas e obstetras: diante de gestações indesejadas, cerca de 80% de suas mulheres recorreram ao aborto.
O problema do aborto não é moral, é questão de saúde pública. Se 20% das brasileiras com mais de 40 anos já abortaram na clandestinidade, deveríamos puni-las com o rigor das leis atuais?

Entre as médicas ginecologistas que engravidaram sem desejar, a situação é semelhante: 77% abortaram.
Por outro lado, 60% dos profissionais ouvidos nessa pesquisa confessaram que não ajudariam uma paciente, encaminhando-a a outro médico ou indicando medicamento abortivo.

Na Penitenciária Feminina da Capital, é grande o número de meninas que abortaram em espeluncas mantidas na periferia por mulheres que lhes vendem Cytotec e realizam procedimentos cirúrgicos semelhantes às torturas dos tempos da Inquisição.
Quando essas mulheres vão parar na cadeia, são encaminhadas para a ala do Seguro. As mesmas que a elas recorrem nos momentos de aflição, recusam-se a cumprir pena ao lado delas. Dizem que “elas matam criancinhas”.

Estudo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro revelou que, em 2013, o SUS internou 154.391 mulheres com complicações de abortamentos. Como a estimativa é de que aconteça uma complicação para cada quatro ou cinco casos, o cálculo é de que tenham ocorrido 685 mil a 856 mil abortos clandestinos no País.

Um estudo publicado por pesquisadores da Universidade de Brasília mostra que 20% dos 37 milhões de brasileiras com mais de 40 anos já fizeram aborto. Esses números servem de referência para a Organização Mundial da Saúde.

Realizados nas piores condições, as complicações dos abortamentos são a quinta causa de morte materna, no país.
A questão do aborto não pode ser mais tratada da forma bizarra e irresponsável como tem sido. Não se trata de ser a favor ou contra. Todos somos contrários, especialmente as mulheres grávidas que a ele recorrem como última saída.

O problema do aborto não é moral, é questão de saúde pública. Se 20% das brasileiras com mais de 40 anos já abortaram na clandestinidade, deveríamos puni-las com o rigor das leis atuais? Haveria cadeia para mais de 7 milhões?
Deixemos de hipocrisia. Nossa legislação só não muda porque as mulheres de melhor poder aquisitivo abortam em condições relativamente seguras. As mais pobres é que correm risco de morte e sentem na pele os rigores da lei.

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