Chico Buarque de Holanda ressaltou que a vida é uma roda viva, que joga os viventes pra lá e pra cá. Nascemos sem pedir, e morremos sem querer, e sem saber quando, sem muita autonomia para traçar nosso destino. Podemos decidir sobre qual profissão adotar, ou com quem desejamos casar, mas os roteiros da nossa vida dependem de circunstâncias que se cruzam em nossa existência, independentes da nossa vontade. Não somos consultados se desejamos nascer em uma família rica ou pobre, culta ou ignorante, mas essas circunstâncias farão a diferença entre viver bem ou viver mal. Há jovens que reagem positivamente em relação à pobreza em que vivem, e conseguem uma certa ascensão social, como há filhos de ricos que reagem mal em relação à riqueza que desfrutam, acomodando-se diante da vida. Mas estes resultados são exceções às regras sociais predominantes, pois miséria gera miséria, e riqueza gera riqueza. E através desta regra social, a maioria dos viventes não conseguem traçar seu próprio destino, e mantêm-se envolvidos pelos caprichos ocultos da existência. Foi na esteira destes caprichos que nasci em uma família pobre e tornei-me remediado. Passei minha infância entre meninos da vizinhança onde morava, e a adolescência entre colegas da escola onde estudei. Estas amizades foram como aves, que surgiram na primavera da minha vida e revoaram no outono para lugares que a vida de cada um lhe proporcionou. Entre os muitos amigos que tive na juventude, lembrei-me de Benão, um negro corpulento, lento nas reações, dócil como um animal de criação, mas que se tornava violento quando sentia-se ofendido. Nestas ocasiões, despia-se de sua docilidade, e partia para a briga com quem o ofendeu. Nos cruzamentos que a vida nos coloca, certa vez Benão cruzou-se com Fuleco, palhaço de um circo que constantemente se instalava em Itu. Além de palhaço, Fuleco era o proprietário, o equilibrista, o mágico e o trapezista deste pequeno circo, que em forma de rodízio se instalava sempre em um restrito círculo de cidades. Este reduzido circuito decorria das amizades que Fuleco fazia com seus moradores, com o intuito de conhecer as particularidades da vida de certas pessoas, que recebiam ingressos gratuitos para os espetáculos circenses. Mas esta benevolência tinha suas razões ocultas, pois Fuleco sabia várias particularidades dos beneficiados com os ingressos, e combinava com eles que seriam chamados no picadeiro do circo para que ele supostamente adivinhasse acontecimentos da vida do participante do espetáculo. Como secretamente sabia da vida de seus convidados, discorria sobre ela com relativa exatidão, e assim recebia o aplauso do público por essa sua capacidade de adivinhar segredos da vida alheia. Foi em um destes espetáculos que levamos Benão para assisti-lo. Como era muito popular na cidade, começamos a gritar o seu nome para que subisse ao palco para testar a capacidade de adivinhar de Fuleco. E como fomos acompanhados em coro nesse pedido pelo público presente, não restou a Fuleco outra alternativa a não ser chamar Benão para vir ao picadeiro. Influenciado pelo público, Benão atendeu ao pedido do palhaço. E como alternativa para remendar a situação inesperada, Fuleco começou a falar aleatoriamente sobre a vida do pai de Benão, mas como essa exposição não condizia com o que Benão conhecia do pai, apontou o dedo para o palhaço e exclamou com conhecimento de causa: “-É mentira, é mentira, porque meu pai morreu há muito tempo!” Diante do silêncio interrogativo do público, Fuleco respondeu a Benão da pior maneira que poderia responder. Disse, com ar de zombaria: “-Esse homem que morreu era o marido de sua mãe, mas não era seu pai!” Entre a resposta acintosa do palhaço e a gargalhada quase unânime do público, Benão ainda demorou um momento para entender a ofensa de Fuleco. Mas passados esses segundos de indecisão, reagiu com a violência de sempre nos momentos de raiva. Em pleno picadeiro começou a esmurrar o surpreso palhaço, para o delírio da plateia, que gritava: “-Benão! Benão! Bate mais Benão!” Contido pelos demais artistas do circo, Benão voltou à calma costumeira, enquanto o infeliz palhaço ficou todo machucado. Foi mais um capricho da roda vida que cruzou Benão com Fuleco daquela maneira, e rendeu na primeira edição do jornal da cidade esta manchete: “-O dia em que Fuleco apanhou!”
